A Biblioteca do Rei Afonso Henriques

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sabe bem um pouco de Poesia...

 Álvaro de Campos

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,

Por toda a parte das coisas sobrepostas,

Os andares vários da acumulação da vida...

Calaram o piano no terceiro-andar...

Não oiço já passos no segundo-andar...

No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.

Não quero ir à janela:

Se eu olhar, que de estrelas!

Que grandes silêncios maiores há no alto!

Que céu anticitadino! —

Antes, recluso,

Num desejo de não ser recluso,

Escuto ansiosamente os ruídos da rua...

Um automóvel! — demasiado rápido! —

Os duplos passos em conversa falam-me

O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,

Esperando

Qualquer coisa antes que durma...

Qualquer coisa...

9-8-1934

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 59.

 Este poema de Álvaro de Campos -̶  um dos heterónimos de Fernando Pessoa – produzido numa  fase em que sobressaem o devaneio, a melancolia e o tédio pela vida, poderia servir para assinalar o contraste entre a euforia e o ruído do dia com a serenidade que a noite transporta. Lentamente, a passagem do tempo é sugerida pelo silêncio que a pouco e pouco se instala.

Sugestão de leitura da BE O ruído e a Cidade (cota 504, RUI), título adaptado do livro francês Le bruit e la ville.