“Em tantos momentos da História, alguns deles bem extremos,
os livros foram remos para guiar jangadas."
José Tolentino Mendonça,“Que coisa são as nuvens”, Libroterapia in Expresso, 14 de março de 2020, p.98.
Curiosidade: Sabias que a peça de teatro O Rei Lear de Shakespeare — que inspirou Alice Vieira na obra Leandro, o rei da Helíria — foi escrita em tempo de quarenta, durante a peste de 1606?
José Tolentino Mendonça,“Que coisa são as nuvens”, Libroterapia in Expresso, 14 de março de 2020, p.98.
Curiosidade: Sabias que a peça de teatro O Rei Lear de Shakespeare — que inspirou Alice Vieira na obra Leandro, o rei da Helíria — foi escrita em tempo de quarenta, durante a peste de 1606?
Lê a continuidade da crónica de José Tolentino Mendonça, que te permitirá uma excelente leitura.
Os livros são salva-vidas para todos os tempos, mas os tempos difíceis como que o explicitam melhor. A leitura é uma forma de resistir a este vírus que está a transformar tudo (a organização do quotidiano, a estabilidade económica, as prioridades políticas, a nossa psique...) e que pede o respeito escrupuloso das medidas sanitárias, mas também uma reforçada resiliência interior.
Para falar do caso italiano que, neste momento, é porventura um dos laboratórios mais clamorosos para a gestão de uma crise que, dia a dia, se está a tornar mundial: as escolas, universidades, museus, centros culturais, teatros, arquivos e bibliotecas encerraram temporariamente as atividades pedagógicas ou de acesso. Mas, assumindo as restrições que se impõem, essas instituições não deixam de estar ao lado das suas comunidades, agilizando formas de presença e de serviço. Os exemplos multiplicam-se. Giorgio Barbiero, diretor artístico do Teatro de Roma, anunciou a transmissão em streaming da leitura de textos fundamentais, a começar pelo “Decameron”, com o propósito de desmontar a infeção do medo. Diversos escritores têm apelado a que nas (muito) menos frequentes saídas de casa não se abandone a passagem por uma livraria e fazem-se fotografar com livros encostados ao rosto, a imitar as máscaras respiratórias. Há livreiros com propostas inovadoras: aceitam as encomendas dos clientes que não se podem deslocar às livrarias e vão eles, de bicicleta, levar os livros ao domicílio. Muitas comunidades religiosas têm apelado a que a actual limitação do culto desperte uma maior convivência pessoal ou em família com os textos sagrados. As bibliotecas também estão activas. Um exemplo na cidade de Florença é o do requintado Gabinete Vieusseux de leitura, que está precisamente este ano a celebrar o segundo centenário da sua fundação. Estão suspensos os serviços de estudo e leitura na sede, mas continua em funcionamento o empréstimo de livros aos leitores, inclusive àqueles que se inscrevem pela primeira vez. Para assinalar os 200 anos, o Gabinete Vieusseux apresenta uma curiosa exposição sobre alguns dos seus ilustres frequentadores, mostrando as obras que então requisitaram. A exposição recorda a Itália como o país do Grande Tour, esse girovagar obrigatório que oferecia como que uma iniciação às raízes e ao imaginário estético do ocidente.
Para falar do caso italiano que, neste momento, é porventura um dos laboratórios mais clamorosos para a gestão de uma crise que, dia a dia, se está a tornar mundial: as escolas, universidades, museus, centros culturais, teatros, arquivos e bibliotecas encerraram temporariamente as atividades pedagógicas ou de acesso. Mas, assumindo as restrições que se impõem, essas instituições não deixam de estar ao lado das suas comunidades, agilizando formas de presença e de serviço. Os exemplos multiplicam-se. Giorgio Barbiero, diretor artístico do Teatro de Roma, anunciou a transmissão em streaming da leitura de textos fundamentais, a começar pelo “Decameron”, com o propósito de desmontar a infeção do medo. Diversos escritores têm apelado a que nas (muito) menos frequentes saídas de casa não se abandone a passagem por uma livraria e fazem-se fotografar com livros encostados ao rosto, a imitar as máscaras respiratórias. Há livreiros com propostas inovadoras: aceitam as encomendas dos clientes que não se podem deslocar às livrarias e vão eles, de bicicleta, levar os livros ao domicílio. Muitas comunidades religiosas têm apelado a que a actual limitação do culto desperte uma maior convivência pessoal ou em família com os textos sagrados. As bibliotecas também estão activas. Um exemplo na cidade de Florença é o do requintado Gabinete Vieusseux de leitura, que está precisamente este ano a celebrar o segundo centenário da sua fundação. Estão suspensos os serviços de estudo e leitura na sede, mas continua em funcionamento o empréstimo de livros aos leitores, inclusive àqueles que se inscrevem pela primeira vez. Para assinalar os 200 anos, o Gabinete Vieusseux apresenta uma curiosa exposição sobre alguns dos seus ilustres frequentadores, mostrando as obras que então requisitaram. A exposição recorda a Itália como o país do Grande Tour, esse girovagar obrigatório que oferecia como que uma iniciação às raízes e ao imaginário estético do ocidente.
Muitos desses viajantes de outrora, momentaneamente distantes das bibliotecas próprias, precipitavam-se para as bibliotecas públicas mais importantes do Bel Paese. Dostoievsky, Henry James, Aby Warburg, Artur Schopenhauer, Hector Berlioz, Gertrud Stein, Andre Gide, Heinrich Heine, Hans Christian Andersen contam-se entre os inscritos da Vieusseux. Em 1868, por exemplo, Dostoievsky fez uma residência longa na capital do Arno onde terminaria o seu romance “O Idiota”. E nesse ano requisitou do Gabinete Vieusseux, entre outros, ao vários volumes de “Questões sobre a Enciclopédia”, de Voltaire, e o romance de Flaubert, “Madame Bovary”. Falando de livros, o romancista dizia que a sua função é dotar a vida de uma consciência susceptível de explicar não só o que vivemos, mas também de nos iluminar acerca das razões pelas quais vivemos. Assim, em tantos momentos da história – alguns deles bem extremos – os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada. Romano Guardini, um dos teólogos do século XX mais amados por escritores, de Evelyn Waugh a Flannery O’Connor ou a Agustina Bessa-Luís, dizia que o livro é uma pátria espiritual, pois nele se exprime o próprio ser do homem.
José Tolentino de Mendonça, “Libroterapia”, in “Que coisa são as nuvens”, revista do Expresso, 14-03-2020, p.98